Uma das principais vantagens dos blockchains é o anonimato que proporcionam aos seus membros. Ninguém sabe quem você é, desde que você concorde em jogar bem e cumprir as regras.
Superficialmente, esta pode parecer uma forma ideal de proteger a privacidade. Mas uma análise mais detalhada revela que os blockchains podem representar muitas ameaças significativas à privacidade – tanto para membros como para não-membros.
A popularidade das blockchains cresceu na última década precisamente porque criaram um ambiente confiável para as pessoas realizarem transações digitais, especialmente aquelas que envolvem moedas cibernéticas. Hoje em dia, no entanto, a tecnologia é usada para uma ampla gama de ativos tokenizados, incluindo bens, serviços, terrenos e até mesmo termos e obrigações dentro de contratos legais.
Dados protegidos
A maioria dos blockchains usa um infinidade de ferramentas para proteger a privacidade, como criptografia de dados, validação de consenso, criptografia e a própria arquitetura distribuída da cadeia. Isso permite uma ampla gama de aplicações, incluindo mensagens seguras, imutabilidade de armazenamento, validação de propriedade e proveniência de software e ativos. Tudo isto ajudou a blockchain a tornar-se uma adição valiosa ao modelo de negócio empresarial e um impulsionador chave da economia digital.
Mas embora todas essas medidas sejam projetadas para impedir que pessoas de fora acessem os dados dentro de uma blockchain, e os que estão dentro? Qualquer pessoa com uma chave válida para uma determinada cadeia pode ver todos os dados que ela contém – desde que não haja regras que impeçam isso, o que nem sempre é o caso. O que acontece quando informações privadas, como identificações fiscais, registros de saúde ou dados financeiros, acabam em um blockchain? E para piorar a situação, o que acontece quando esta informação é colocada na cadeia não pelas pessoas que identifica e que não têm acesso a ela, mas por terceiros?
Privacidade vs. Transparência
Uma publicação recente do escritório de advocacia internacional AMLegals observa que embora existam leis que regem o uso de informações pessoais, estas muitas vezes vai contra as vantagens de transparência do blockchain. Afinal, transparência significa ser visível para todos, mesmo para os membros da cadeia que são anónimos e cujas intenções são em grande parte desconhecidas.
Isto pode ser particularmente problemático em blockchains públicos, que estão abertos a todos e podem funcionar como verdadeiras câmaras de compensação para dados de todos os tipos. E agora que aplicações como os contratos inteligentes estão a automatizar a partilha e a cópia de dados, a aplicação de um regime de privacidade baseado em regras torna-se mais difícil, especialmente quando os dados atravessam fronteiras internacionais.
Coleta e Análise
O Blockchain também está emergindo como uma ferramenta de marketing eficaz, o que significa que pode ser usado não apenas para rastrear registros pessoais, mas também compras, visualizações de páginas e até mesmo informações de login.
Alguns desses dados podem alterar potencialmente a vida caso caiam em mãos erradas, e mesmo informações aparentemente inócuas podem ser compiladas e analisadas para determinar se os indivíduos podem ou não ser verdadeiros, como se estão financeiramente estressados. ou tem uma condição médica grave.
E estes dados podem ser usados para ultrapassar a linha do simples marketing à exploração ou mesmo à coerção.
A professora do MIT, Catherine Tucker, da Sloan School of Management, diz que estratégias de marketing baseadas em informações de blockchain também podem representam riscos para indivíduos devido à imutabilidade inerente da tecnologia.
Os registros armazenados no blockchain permanecem lá para sempre, o que pode deixar falsas impressões sobre as circunstâncias atuais da vida de um indivíduo. Isto pode ter consequências menores, como alguém que procurou sapatos no ano passado e não precisar de outro par este ano, ou consequências graves, como alguém que cometeu um crime há dez anos e, portanto, não merece crédito hoje.
Acesso governamental
No momento, o blockchain atraiu o maior interesse do setor privado. Mas o que acontecerá se/quando os governos aderirem e, por exemplo, vincularem o blockchain aos programas de identificação nacional? O Brasil, na verdade, está fazendo isso agora usando um blockchain privado desenvolvido por uma empresa chamada Serpro.
Ostensivamente, a medida foi concebida para simplificar o acesso aos registos e serviços governamentais e para combater o crime e até mesmo a corrupção pública. Ao mesmo tempo, porém, o país está a desenvolver as suas próprias moedas digitais do banco central (CBDC), que provavelmente existirão noutra blockchain.
Não está claro exatamente quantos dados fluirão para qualquer uma dessas cadeias, mas uma coisa é certa: as autoridades governamentais acharão muito mais fácil discernir o que os brasileiros estão fazendo e como estão usando seus ativos digitais.
O resultado final
Este é talvez o enigma entre blockchain e privacidade. Tanto o governo como a indústria privada já têm acesso a enormes quantidades de dados sobre praticamente todos os cidadãos do mundo. O Blockchain apenas facilita o acesso a essas informações. E, em muitos aspectos, os blockchains são mais seguros do que as arquiteturas de armazenamento tradicionais.
Mas também estão mais abertos a quem tem acesso legítimo e nem sempre é fácil determinar quem se juntou a uma rede com que finalidade. No final das contas, a confiança gerada pela própria natureza das blockchains não é universal. Só existe entre quem tem acesso à cadeia, não quem tem dados pessoais para proteger.